às vezes achava que tinha dois eus. um para quando se erguia acima das pessoas à volta e as via sem defesas, com clareza. outro para quando se sentia pequenina e quase insignificante, e tinha que mendigar amor e carinho, esfomeada por atenção. uma vez mencionou a alguém que tinha alturas em que quase conseguia ver as relações entre as pessoas, como se fossem fios coloridos que as prendessem umas às outras. ver as redes, o funcionar da sociedade, como se fosse transparente. perceber aquilo que faz mover as pessoas, que dita as suas acções. era estranho pensar assim, estranho sentir-se tão à parte para observar inobservada. outras vezes sentia o que as pessoas à volta dela sentiam. imbuía-se delas, vivia com elas, ria como elas. um pouco bamboleante, ela andava à deriva, sem saber muito bem o que fazer com ela própria, sem saber quem era, oscilando entre querer ser igual a todos e elevar-se na sua diferença. e assim vivia a vida, ora absorvendo-a, ora fugindo dela, numa relação de amor-ódio como só ela sabia ter.